Moraes usou TSE fora do rito regular para investigar bolsonaristas no STF, diz jornal
O gabinete do ministro Alexandre de Moraes, no Supremo Tribunal Federal (STF), determinou por mensagens de texto e extraoficialmente a produção de relatórios pela Justiça Eleitoral para embasar decisões do próprio magistrado contra bolsonaristas no “inquérito das fake news” na mais alta corte do país durante e após as eleições de 2022.
As informações foram publicadas nesta terça-feira, 13, pelo jornal Folha de S.Paulo.
Diálogos aos quais a reportagem teve acesso mostram como o setor de combate à desinformação do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), presidido na época por Moraes, foi utilizado como “braço investigativo” do gabinete do ministro no Supremo.
As mensagens revelam um fluxo fora do rito regular envolvendo os dois tribunais, com o órgão antidesinformação do TSE tendo sido utilizado para investigar e abastecer um inquérito de outro tribunal, o STF, sobre assuntos relacionados ou não à eleição daquele ano.
Em alguns momentos das conversas, assessores relataram irritação de Moraes com a demora no cumprimento de suas ordens. “Vocês querem que eu faça o laudo?“, consta em uma das reproduções de falas do ministro.
“Ele cismou. Quando ele cisma, é uma tragédia“, comentou um dos assessores. “Ele tá bravo agora“, disse outro.
O maior volume de mensagens com pedidos informais — todas via WhatsApp — envolveu o juiz instrutor Airton Vieira, assessor mais próximo de Moraes no STF, e Eduardo Tagliaferro, perito criminal que na época chefiava a Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED) do TSE.
Tagliaferro deixou o cargo no TSE em maio de 2023, após ser preso por suspeita de violência doméstica contra a esposa, em Caieiras, São Paulo.
Em nota divulgada após a publicação da reportagem, o gabinete de Moraes disse que a Justiça Eleitoral tem poder de polícia e que não há irregularidades nos pedidos do ministro. O juiz Airton Vieira ainda não se pronunciou sobre o caso.
Já Tagliaferro afirmou que não se manifestará, mas que “cumpria todas as ordens que me eram dadas e não me recordo de ter cometido qualquer ilegalidade“.
As mensagens mostram que Airton Vieira pediu informalmente via WhatsApp ao funcionário do TSE relatórios específicos contra aliados do ex-presidente Jair Bolsonaro. Esses documentos foram encaminhados da Justiça Eleitoral para o “inquérito das fake news”, no STF.
Em nenhum dos casos havia informação oficial de que esses relatórios haviam sido produzidos a pedido do ministro ou de seu gabinete na Suprema Corte. Em alguns, aparecia que o material era “de ordem” do juiz auxiliar do TSE. Em outros, uma denúncia anônima.
As mensagens abrangem o período de agosto de 2022, já durante a campanha eleitoral, e maio de 2023.
Ao longo de sua reportagem, o jornal paulista ressalta que obteve o material de fontes que tiveram acesso a dados de um telefone que contém as mensagens, não decorrentes de interceptação ilegal ou acesso de hackers.
O conjunto de diálogos mostra pelo menos duas dezenas de casos em que o gabinete de Moraes no STF solicita extraoficialmente a produção de relatórios pelo TSE.
Pelo menos parte desses documentos foi usada pelo ministro para embasar medidas criminais contra bolsonaristas, como cancelamento de passaportes, bloqueio de redes sociais e intimações para depoimento à Polícia Federal (PF).
O controverso “inquérito das fake news”, aberto em março de 2019, tornou-se um dos mais polêmicos em tramitação no STF, tendo sido utilizado por Moraes nos últimos anos para tomar decisões de ofício (sem provocação), sem a participação do Ministério Público (MP) ou da PF.
A Folha de S.Paulo demostra a dinâmica dessa forma de trabalhar do gabinete de Moraes com dois exemplos de pedidos de monitoramento e produção de relatórios sobre postagens do jornalista Rodrigo Constantino, apoiador de Bolsonaro.
Um deles ocorreu em 28 de dezembro de 2022, quatro dias antes da posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, quando, em tese, não havia mais motivo para o TSE atuar.
O juiz auxiliar do gabinete de Moraes no STF pergunta a Tagliaferro, do TSE, se ele pode falar. “Posso sim, posso sim, é por acaso [o caso] do Constantino?“.
Após esse áudio, os dois iniciam uma conversa sobre um pedido de Moraes para fazer relatórios a partir de publicações nas redes de Constantino e também do bolsonarista Paulo Figueiredo, ex-apresentador da Jovem Pan e neto do ex-presidente-general João Batista Figueiredo, o último da ditadura militar.
Depois de Tagliaferro, do TSE, encaminhar uma primeira versão do relatório sobre Constantino, Airton Vieira, do STF, manda prints de postagens do jornalista e cobra a alteração do documento para inclusão de mais manifestações.
Pelas mensagens, fica claro que a demanda para produção do relatório partiu do próprio Moraes.
Em 22 de novembro de 2022, outro pedido de Moraes sobre Constantino chega ao órgão antidesinformação do TSE. Nesse dia, às 22h49, Airton Vieira envia o print de uma conversa com o ministro em um grupo de WhatsApp chamado “Inquéritos”.
A mensagem mostra o magistrado enviando postagens de Constantino, uma delas sobre o fato de o partido de Bolsonaro, o PL, não ter questionado o TSE sobre um tema não apontado pela reportagem do jornal.
“Peça para o Eduardo analisar as mensagens desse [Constantino] para vermos se dá para bloquear e prever multa“, diz a mensagem de Moraes, cujos prints foram enviados a Eduardo Tagliaferro. “Já recebi” e “Está para derrubada“, responde o assessor do TSE em duas mensagens.
Após pedir para Tagliaferro produzir um relatório “como de praxe”, Airton Vieira e o assessor do TSE discutem sobre se as decisões seriam pelo STF ou pelo tribunal eleitoral.
A princípio, Vieira diz que o bloqueio seria dado pelo TSE e a multa pelo Supremo. Em poucos minutos, porém, ele informa que tudo será pela mais alta corte brasileira e pede para Tagliaferro “caprichar”.
Em uma outra conversa, no dia 4 de dezembro de 2022, os próprios assessores de Moraes manifestam receio sobre o modo “não convencional” que vinha sendo usado.
Às 12h daquele dia, Marco Antônio Vargas, juiz auxiliar de Moraes no TSE, pergunta a Tagliaferro: “Dr. Airton está te passando coisas no privado?“.
Após o chefe do órgão de combate à desinformação responder que sim, o juiz do TSE faz uma “brincadeira” sobre a possibilidade de o modelo implicar em nulidade das provas. “Falha na prova. Vou impugnar“, disse ele.
Tagliaferro então fala da sua apreensão com o modelo de envio de relatórios por meio do TSE a pedido de Airton Vieira. “Temos que tomar cuidado com essas coisas saindo pelo TSE. É seu nome“, diz ele.
Em seguida, chega a sugerir um possível caminho para “aliviar isso”: “Nem que crie um e-mail para enviar para nós uma denúncia.“